quinta-feira, 23 de abril de 2015

Um Viver Superficial

Em Isaías 39 é nos dito que quando a notícia da doença e da recuperação de Ezequias chegou até a corte babilônica, foram enviados mensageiros com cartas e um presente para Ezequias. Ezequias era um recipiente da graça de Deus, mas foi incapaz de suportar o teste da graça. A Palavra de Deus diz: “Ezequias se agradou deles, e lhes mostrou a casa do seu tesouro, a prata, o ouro, as especiarias, os óleos finos, todo o seu arsenal e tudo quanto se achava nos seus tesouros.” 

Ezequias não venceu a tentação de mostrar todas as suas coisas. Ele tinha acabado de ser curado maravilhosamente de sua doença, e, indubitavelmente, sentiu-se importante e pensou que existiam poucas pessoas no mundo que haviam tido uma experiência tão notável quanto a dele. A quantos Deus deu um sinal tão maravilhosos ao serem curados, como deu a ele quando a sobra no relógio de Acaz retrocedeu dez graus? Em seu entusiasmo, Ezequias mostrou todos os seus tesouros aos homens da Babilônia, de forma que tudo o que ele possuía tornou-se conhecido por eles. Devido a essa exposição, Isaías lhe disse: “Ouve a palavra do Senhor dos exércitos: Eis que virão dias em que tudo quanto houver em tua casa, como o que entesouraram teus pais até o dia de hoje, será levado para a Babilônia; não ficará coisa alguma, disse o Senhor.” A medida com que exibimos coisas aos outros será a medida de nossa própria perda. Isso é sério e requer nossa atenção. 

É uma lástima tantas pessoas não suportarem manter ocultas suas experiências! Certa vez um irmão disse: “Muitos dos irmãos adoecem, e quando se recuperam, dão seus testemunhos. Eu queria ter uma doença – não uma doença fatal – e que Deus me curasse; então, poderia ter algo a dizer na próxima reunião de testemunhos”. Qual era a motivação desse irmão? Ser capaz de dar um testemunho. Ele buscava uma experiência a fim de ter algo a falar sobre ela. Oh! Esse tipo de viver superficial traz sérios danos aos filhos de Deus; isso exclui a possibilidade de progresso espiritual.

Não devemos, então, testemunhar da graça de Deus? Sim, devemos. Paulo o fez, e muitos dos filhos de Deus tem feito isso de geração em geração. Mas testemunhar é uma coisa; deleitar-se ao expor uma experiência é outra coisa bem diferente. Qual é o nosso objetivo ao testificar? É para que os outros ganhem proveito ou é para que possamos ter o prazer em falar? Amar ouvir sua própria voz e desejar ser útil a outros, são duas coisas totalmente diferentes. Não devemos abster-nos de testificar, mas devemos abster-nos de expor tudo.

O Senhor Jesus algumas vezes deu Seu testemunho, mas nunca se entregou no falar. No Evangelho de Marcos é nos dito mais de uma vez que Ele curou os doentes e insistiu que a história da cura fosse mantida em secreto. Mas em Marcos 5:19 está registrado que, após curar um homem possuído por demônio, Ele lhe disse: “Vai para tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez, e como teve compaixão de ti.” Podemos falar que grandes coisas o Senhor fez por nós, mas não anunciar essas coisas por toda parte como notícias; tampouco ousamos revelar tudo, pois fazê-lo é desnudar nossas raízes. É essencial que algumas de nossas experiências permaneçam encobertas, pois revela-las todas é perder tudo.

Devemos lembrar que se expusermos todo o nosso tesouro, o cativeiro não poderá ser evitado. Se expusermos nossas raízes, descobriremos que estaremos expondo-as ao ataque do inimigo, e Deus não nos protegerá. Se Ele quer que demos um testemunho, não temos alternativa senão revelar aquela experiência de Sua graça que Ele pede que revelemos, mas nossas muitas outras experiências devem permanecer ocultas.

O mesmo aplica-se à nossa obra. Por meio de Sua graça, Deus cumpriu algo por nosso intermédio, mas lembre-se que o que Ele cumpriu não é algo para anúncio ou propaganda. Se expusermos a obra de Deus, perceberemos que um toque de morte virá sobre ela imediatamente e a perda corresponderá à extensão com que expusermos os resultados. Assim que Davi contou os filhos de Israel a morte chegou, e muitos dentre o povo pereceram (2 Sm.24).

A nossa história secreta com o Senhor deve ser preservada, com exceção daquilo que Ele exige que revelemos. Somente se Ele se mover em nosso interior para revelar algo, ousaremos revela-lo. Se Ele quer que compartilhemos alguma experiência com um irmão, não ousamos retê-la, porque retê-la seria violar a lei do Corpo de Cristo. A comunhão é uma lei de vida corporativa, portanto, quando a vida se levanta no interior de um membro para fluir para outro membro, não deve ser barrada. Devemos ser positivos, não negativos, e devemos sempre ministrar vida aos outros... Creio que devemos aprender o que é o Corpo de Cristo e o que é o fluir de vida entre os membros, mas creio que também devemos aprender a necessidade de salvaguardar aquilo que é especificamente nosso como membros do Corpo.

Conforme sua vida secreta for se aprofundando, você descobrirá que “um abismo chama outro abismo”. Quando você puder gerar coisas valiosas das profundezas de sua vida interior, perceberá que outras vidas serão profundamente afetadas. Sem nenhum movimento exterior forte – somente uma reação tranquila ao mover da vida interior – você alcançará outra vida, e ela será ajudada, e para dentro dela virá a certeza de que mais profundamente que a consciência, ela encontrou profundidade; e profundidade respondeu à profundidade. Se em sua vida não há profundidade, sua obra superficial afetará apenas superficialmente outras vidas. 


Extraído do texto “Um Abismo Chama outro Abismo” – Watchman Nee (do livro Doze Cestos Cheios Vol.1)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Chamado, Eleito, Fiel

“Estes combaterão contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, porque é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão os que estão com ele, chamados, e eleitos, e fiéis”. Apocalipse 17:14.

Em certo sentido, estas três palavras representam uma graduação de uma esfera de provação para outra. Embora possamos ser “escolhidos Nele antes da fundação do mundo”, é também verdade que quando o assunto é o serviço confiado e uma intimidade com Deus, a escolha é daqueles que “retém firme seu chamado e eleição”.

Deus inicia todos seus tratos conosco por um chamado. “O chamado de Deus”, para ser útil, deve ser sentido e percebido pelo homem interior. A carne pode ouvi-lo; como aconteceu com aqueles que iam com Paulo, eles podem ter sido jogados ao chão pela glória da revelação; seus sentidos podem ter testemunhado algumas das manifestações exteriores que acompanham o chamado; mas, como Paulo diz, “eles não ouviram a voz Daquele que falou a mim”.

O chamado de Deus contém tanto graça como verdade. A verdade é o instrumento separador. “Sai”. A graça é a promessa. “Abençoarei e farei uma benção”. O homem muitas vezes se agarra na graça, o “Abençoarei” de Deus, e falha em consentir com a demanda do “sai”. Ora, isto não só se aplica no assunto de nossos primeiros passos na salvação, mas também em novas revelações e chamados em diferentes momentos da vida cristã. O chamado de Deus para uma mais completa e mais ampla aceitação da verdade e ministério; de testemunho e testemunha; de rendição e experiência, surgirá sem duvida, por uma ou outra das formas divinas de visitação àqueles que o Senhor deseja conduzir na graça. 

Isto terá um tempo apropriado, definido e desafiador. Um mensageiro pode vir do nada; do nada de reputação, reconhecimento, fama mundana ou honra. Ele entregará uma mensagem, apenas ficando o tempo suficiente para deixar suas implicações essenciais àqueles que ouvem. Então, tendo seguido, as coisas nunca poderão ser as mesmas para eles novamente.

O “chamado” soou. A crise se precipitou. A questão está entre a vida com suas limitações conhecidas ou desconhecidas, e aquilo que Deus oferece. Mas, como é geralmente o caso, esta verdade vai chamar por um “sair”. Sair pode representar deixar uma posição com certa popularidade, comparada a algo fácil. Pode haver um risco na reputação, ou perda de prestigio, uma desaprovação entre os homens, ser rotulado de “singular”, “peculiar”, “extremo”, “perigoso”. Pode significar um impacto direto de todo o preconceito, tradição, e desaprovação do mundo religioso. Pode envolver exclusão, ostracismo e suspeita. Estes podem ser os companheiros nos chamados de Deus para avançar com Ele além do padrão geralmente aceito. Este é o custo do pioneirismo para almas. Este é o preço a ser pago para ser útil no serviço a Deus e homens.

Aquele que pagou o preço que poucos pagarão, e a quem foram confiadas uma revelação superlativa e serviço imortal e universal, disse no fim de sua vida “não há nenhum homem da mesma opinião comigo”. “Nenhum homem permaneceu comigo”. Isto significou que ele estava errado? Quem ousará dizer que sim?

Observe, além disso, que cada passo adiante com Deus traz o “chamado” a uma mais direta e intima colisão com as forças do inimigo, atraindo a sua atenção. O único caminho para “triunfar na vida” é literalmente sabendo dessa necessidade.

A interrogação é, vamos continuar com Deus a qualquer custo? Recusaremos Àquele que fala? Vamos responder a cada chamado para avançar, qualquer que seja ele? Permaneceremos firmes onde o preço parece quase que demasiado? Vamos  “nos manter firmes” na provação do “chamado”, e tendo sido provados pela graça de Deus, seremos escolhidos para esta obra que não poderia ser feito por outra pessoa?

De outra forma, afundaremos de volta para nosso caminho mais fácil, e tomaremos a linha de menos resistência; mantendo nossos tesouros, com medo de perde-los, mantendo nosso lugar de diversão e seguranças das águas rasas, sem “lançar-nos ao profundo”.

O “muito bem, servo bom e fiel”, será reservado para aqueles que arriscam perder alguma coisa e foram para além da obrigação e dever e embarcaram na segunda milha do “chamado” da revelação progressiva.

Oh, queridos de Deus, vamos seguir todo o caminho e independente do que vai envolver – nunca antecederá o sofrimento apostólico – aspire por ser um dos “chamados, eleitos e fieis”.


Primeiramente publicado na revista “Um Testemunho e Uma Testemunha”, Jul-Ago 1926, Vol 4-4

terça-feira, 7 de abril de 2015

O Desenvolvimento do Propósito Divino na Igreja

Eu gostaria que fosse mais claramente reconhecido entre os cristãos, que é mais importante para Deus que sejamos conformados à imagem do Seu Filho do que estejamos fazendo tantas coisas para Ele. Parece que nós colocamos um enorme valor sobre o que estamos fazendo. Percebemos isso porque quando o Senhor tira de nós a capacidade de fazer, nos conduzindo a provas e testes de uma maneira interior, onde todas as virtudes divinas são necessárias, elas não parecem ter valor. Nesses momentos nos revoltamos e desejamos fazer alguma coisa. ‘Vamos sair dessa situação e fazer alguma coisa, trabalhar!’ 

Isso acontece tantas vezes quando somos colocados de lado pelo sofrimento... mas o Senhor está tentando produzir algo mais de Cristo em nós: paciência, tolerância, amor, compaixão. Desejamos sair tão rápido da situação, para poder fazer alguma coisa. ‘Ficar nessa situação é não fazer nada!’ 

E é verdade que, quando o Senhor realmente escolhe trabalhar em uma pessoa, Ele ocupa muito mais do Seu tempo em mudar aquela vida à imagem do Seu Filho, do que a levando pelo mundo fazendo toda a sorte de coisas. O que Deus está fazendo? Ele está preparando a igreja para dominar. Ele está tornando o reino algo interior, antes que seja expresso de forma exterior. Ele está fazendo algo secreto, antes de expor a Sua obra a um universo maravilhado. Ele está construindo Cristo dentro para o dia da manifestação dEle. Se você tem dúvidas quanto a isso, existe um texto nas Escrituras que traz a prova conclusiva: “quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado em todos os que creram” (2 Ts 1:10). O texto não diz por todos os que creram, mas em todos os que creram. Este será o dia da manifestação dos filhos de Deus; não os bebês de Deus, mas os filhos de Deus. 

Deus está envolvido agora, de forma meticulosa e diligente, nesse trabalho profundo e difícil (isso do nosso ponto de vista). Se Paulo é um tipo para essa dispensação, a parte mais frutífera da vida de Paulo não aconteceu quando ele estava correndo pelo mundo, mas quando ele estava na prisão e escreveu as cartas. 

A maior revelação que chegou a nós de Jesus Cristo foi dada através daquelas últimas cartas da prisão. Somos levados ao tempo “antes da fundação do mundo”, levados através das eras, levados à era das eras; e então nos são desvendadas essas maravilhosas revelações. As maravilhas descritas nas orações de Paulo, são suficientes para nos deixar sem fôlego: “para saberdes qual é a esperança do seu chamamento...” (Ef.1:18). Sente e medite nisso. Essa é apenas uma das petições. Podemos juntar inúmeras coisas nesse fragmento, “a esperança do seu chamamento”. Mas isso é apenas uma coisa, e sobre ela segue, “a riqueza da glória da sua herança nos santos...” Pense nisso! Davi iria dizer, Selah! Então, ele continua “e qual a suprema grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais, acima de todo...” (Ef 1:19-21). Três fragmentos de uma oração! Você consegue compreender isso? Pode vislumbrar isso? Que revelação! Que pensamento concentrado da essência divina! Mas Paulo precisou ficar preso e impedido de todas as suas atividades exteriores para que essa revelação pudesse irromper. Sim, eu acredito que tinha que ser assim. 


Adaptado do livro “O Cristo, o Anticristo e a Igreja – cap.2” de T.Austin-Sparks